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A igualdade entre os sexos no Paleolítico “demonstrada”... por um modelo matemático! (Christophe Darmangeat)



Agradeço a Jean-Philippe Deranty, por ter me mostrado os artigos que formam o assunto dessa postagem.
Um caçador Agta (Filipinas)

«Os primeiros homens e mulheres eram iguais, afirmam os cientistas”: é com esse título pouco precavido que o jornal britânico The Guardian informou sobre uma publicação recente do antropólogo Mark Dyble... e despertou minha curiosidade.

Na verdade, não tem como a gente não se perguntar com que método se chegou a um conhecimento tão certo sobre as relações entre os sexos na longínqua pré-história – ainda mais quando se pode ter algumas razões para supor que as relações em questão eram bem diferentes do que o Guardian falou. Então, eu fui dar uma olhada atenta no artigo de Mark Dyble.

O artigo tem, no total... quatro páginas, sendo que boa parte de gráficos. Ou seja, o texto é conciso e, portanto, não entra em detalhes. O artigo apresenta o resultado de uma modelização matemática que ambiciona resolver um paradoxo: a preferência demonstrada pelos indivíduos das sociedades de caçadores-coletores em morar com os seus parentes próximos, em vez de indivíduos afastados geneticamente, que entra em contradição com a composição relativamente fluida e heterogênea dos grupos locais dos mesmos caçadores-coletores. M. Dyble mostra que, introduzindo na equação a escolha igual dos parceiros de residência segundo os sexos, o paradoxo se resolve: o modelo gera gráficos de residência muito próximos dos das duas populações de caçadores-coletores utilizadas como testemunhos pelo pesquisador, a saber, os Agta das Filipinas e os BaYaka dos Camarões. Ao contrário, pressupondo que os indivíduos do sexo masculino tomem as decisões sobre residência, a composição dos grupos prevista pelo modelo fica consideravelmente diferente. Ela reúne bem mais parentes próximos, e fica semelhante à exibida pelos cultivadores « Paranan », que servem de referência (diga-se de passagem que o artigo não explica com precisão quem são esses cultivadores, e eu não consegui localizá-los com certeza).

Até aí, nada e mais a dizer: o modelo parece dar uma explicação satisfatória para um certo número de fatos observados. O problema começa quando o autor do estudo, seguido mas depois ultrapassado pelos jornalistas pressionados a vender o jornal, tira dele conclusões gerais bem ousadas.

Primeira distorção: segundo o artigo original, pode-se “supor que os caçadores-coletores existentes vivem em estruturas sociais que se parecem com as dos hominídeos do passado” (p. 796). Longe de mim recusar toda a verdade desta afirmação mas, ao mesmo tempo, convém perguntar quais caçadores-coletores refletem o passado, e até que ponto. Ora, os Agta são precisamente caçadores-coletores de um tipo bem particular, porque vivem em intercâmbio regular e intenso com os povos agricultores do seu entorno – além disso, são a única população de caçadores-coletores do mundo em que as mulheres também caçam com arco e flecha (eu conheço bem menos os BaYaka, mas tenho mais ou menos certeza de que eles estão numa situação semelhante). Então, tanto num caso como no outro, a representatividade desses povos em relação a seus equivalentes do Paleolítico merece, pelo menos, nuances.

Isso nos leva à segunda distorção (que se trata, além disso, de um perigoso salto mortal duplo): a que consiste, a despeito de todos os dados etnográficos, de atribuir, por omissão, ao conjunto dos caçadores-coletores atuais as características dos Agta e dos BaYaka e, a partir daí, construir um raciocínio para explicar por que as coisas deveriam ser como são – ou, mais exatamente, como dizem que elas são.

Assim, não somente a igualdade entre os sexos se torna uma virtude compartilhada por todos os caçadores-coletores (e não se deixa de usar o clássico, mas insustentável, cenário datando a dominação masculina do neolítico , p. 798), como também ela é acompanhada pela monogamia – mesmo que vários povos caçadores-coletores, começando pelos aborígenes australianos, sejam polígamos! Alguns argumentos baseados na evolução biológica bastam para garantir que “A necessidade de um investimento biparental prediz uma maior igualdade entre os sexos, que se reflete na frequência elevada da monogamia e no gráfico reprodutivo dos caçadores-coletores do sexo masculino.” (p. 798). E, se esse lindo raciocínio contradiz amplamente a realidade observada, com certeza é a realidade que está errada....

Wonggu, um aborígene da Terra de Arnhem, fotografado nos anos 1930. Ele tinha vinte mulheres


Então, a tese ignora deliberadamente os inúmeros caçadores-coletores que não eram monogâmicos ou que oprimiam as mulheres – geralmente, os dois. Sem dúvida, poderia se sustentar (mesmo que eu não veja como) que esses caçadores-coletores, por numerosos que sejam, são menos representativos do passado que os Agta. Mesmo assim, seria necessário fazer o esforço de argumentar nesse sentido, e não se contentar em varrer a poeira abundante para debaixo do tapete, esperando que ninguém perceba.

Pós-escrito: pouco rigoroso, pouco rigoroso e meio. Na semana seguinte, outro jornalista do Guardian dava o seu pitaco nas discussões sobre a família primitiva. De passagem, ele apresentava os trabalhos revolucionários de Lewis Morgan, escrevendo que este havia estudado os iroqueses, uma população “de caçadores-coletores” que “viviam em grandes unidades familiares baseadas em relações de poliamor, onde homens e mulheres eram globalmente iguais”.Ora, para começar, os iroqueses não eram caçadores-coletores, e sim agricultores. Além disso, eis em que termos Morgan relatava sobre o pretenso poliamor dos iroqueses: “o adultério era punido como chicote; mas o castigo era infligido unicamente sobre a mulher, que era considerada a única errada” (League of the Ho-de-No-see,  1851, vol. 1, p. 322).

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